domingo, 28 de dezembro de 2008

Iberismo: Espanha e Portugal - jangada de pedra?





Não sabia sobre o que escrever. Lembrei-me de um trabalho que realizei com alguns colegas durante o 12º ano, com o tema "As Actuais Relações entre Portugal e Espanha". Um dos subtemas em análise foi o Iberismo. Penso que se trata de uma questão actual e interessante que, todos os dias, desperta discussão. Assim, deixo-vos um dos textos do referido trabalho.


Iberismo


«Por iberismo, em sentido lato, denominam-se as tendências políticas que lutam pela unidade da Península Ibérica, tendências essas que atravessam toda a história peninsular. Desde o século XIX, a corrente iberista associou-se à necessidade de afirmação de Portugal e de Espanha face às outras potências europeias. No entanto, em Portugal o Iberismo nunca foi uma corrente que se evidenciou, e se teve alguma expressão em alguns momentos dos séculos XIX e XX, tal facto ficou-se a dever à necessidade de ser equilibrada a posição de dependência lusa face ao Reino Unido.

A verdade é que, historicamente, o papel do iberismo na aproximação dos povos peninsulares foi completamente irrelevante. Pelo contrário, as aproximações luso-espanholas só ocorreram num contexto de absoluto reconhecimento, por parte da Espanha, da soberania, identidade e independência de Portugal, isto é, com a aceitação da existência natural de dois Estados na Península Ibérica. Compreende-se, assim, que as primeiras grandes aproximações políticas à Espanha, durante o séc. XX, tenham sido feitas por homens inquestionavelmente nacionalistas como os dirigentes do Estado Novo, que procuraram sempre evitar qualquer união política.
Não é habitual, entre nós, reflectir sobre o “ambiente” que nos cerca e que constitui o suporte vital dos povos ibéricos.

Numa dimensão espacial, a escala peninsular obriga-nos a um olhar atento e solidário quanto ao manuseamento sustentado dos recursos naturais, renováveis e não renováveis; numa dimensão temporal, a civilização herdada que nos é comum, exige-nos, no contexto europeu e ibérico, a cooperação e a criação de estruturas sócio-económicas e de convivência que fortaleçam o bem-estar, a igualdade ou equidade, tendo em vista a verdadeira fraternidade procurada por iberistas utópicos de ontem e de hoje.

É necessário superar, de uma vez por todas, o desconhecimento mútuo. Para os espanhóis, o distanciamento secular com que comtemplam Portugal e o desconhecimento tão generalizado das suas paisagens, da sua língua e das suas gentes, deveria ser motivo de vergonha. Clarín, iberista convicto escrevera há mais de um século: “Poderá ser discutível se Espanha e Portugal se deveriam juntar num só Estado a breve prazo; não cabe porém discutir se convém a dois povos irmãos e vizinhos se conheçam melhor e, por conseguinte, se estimem mais do que até agora”.

Todas as propostas relacionadas com o iberismo, nas formulações mais historicistas e antropológicas ou mesmo nas mais progressistas e federalistas, se apoiam num quadro de referências geográfico-culturais que todos conhecemos como Península Ibérica. Em todas elas, a Ibéria, ou antes, a mãe Ibéria aparece como suporte e substrato comum.

Castela aparece em alguns textos e escritores portugueses como a “sombra negra da nossa história”. Atribui-se a frase e a ideia de Eça de Queirós a quem doía profundamente a Península (“Oh esta Espanha!...Ah Portugal pequeno, que todavia és doce para os pequenos!”). Foi-se impondo em Portugal uma interpretação reducionista e simplificada da realidade histórica e geográfica, sublinhando sem limites a hegemonia de Castela e mostrando, em contrapartida lógica, uma “simpatia fraterna” para com a Catalunha e a Galiza.

Os portugueses não compreendem que os Filipes não os governaram como castelhanos mas, pelo contrário, como donos e herdeiros de uma monarquia plurinacional. Para os inimigos da União, tornava-se mais cómodo e mais eficaz para os seus objectivos referirem-se à Monarquia como Castela. O vizinho devia continuar a ser castelhano para poder ser inimigo. Não se pode estranhar, portanto, que o Sebastianismo, o mito do “rei encoberto” que regressaria a salvar Portugal e a recuperar a sua grandeza imperial, cobrasse um dividendo político e se convertesse num instrumento muito útil para manipular o sentimento popular orientando-se no sentido de uma oposição contra Madrid e contra a opressão “castelhana”.

Em meados do séc. XIX, insistem nesta linha toda uma série de opúsculos anticastelhanos e refutações anti-ibéricas que exaltam a grandeza de Portugal a quem “coube a glória de caminhar à cabeça da civilização europeia” e desvalorizam, severa e duramente, os iberistas que pretendem persuadir os portugueses a que se unam voluntariamente a Espanha. A atitude portuguesa manterá até hoje essa identificação de Castela com Espanha.

Com a eliminação das fronteiras, a União Europeia estimularia a convergência ibérica. Desde a adesão à Comunidade Europeia e da criação do Mercado Único estabeleceram-se formas distintas de colaboração que multiplicaram contactos públicos e privados entre Espanha e Portugal, animando em quase todas as direcções as relações bilaterais e regionais. É neste contexto que surge, com relevância, a cooperação transfronteiriça. Antes ou depois, teremos que enfrentar, espanhóis e portugueses, o ordenamento do território à escala ibérica e, com maior urgência, problemas de ordenamento transfronteiriço. Este é um dos reptos mais difíceis do iberismo do séc. XXI.

No processo de unidade peninsular, a história falhou inapelavelmente em favor da separação.
Chegou a hora da cooperação contínua. Chegou o momento de pôr de lado a arrogância e a indiferença espanholas e a desconfiança portuguesa. Unamuno aludia, há um século, “à petulante soberba espanhola, de um lado, e à mesquinha desconfiança portuguesa, de outro”, como responsáveis do alheamento espiritual e da falta de comunicação cultural. Em Espanha subsiste a ideia de que Portugal resulta de um fracasso histórico; em Portugal, teme-se a invasão espanhola.

Chegou o momento de partilhar a pluralidade e a diversidade cultivada na Península pela vivência secular de povos e gentes. Há que se valorizar esta teia cultural, onde as paisagens falam com uma linguagem carregada de símbolos geográficos da passagem e do trabalho dos seus homens e mulheres e as línguas transmitem-nos, na raiz das suas palavras, os vestígios distantes e variados que conferem coesão à civilização ibérica. Paisagens culturais e línguas unidas compõem um património imaterial e inatingível sobre o qual repousa uma boa parte do conhecimento e da compreensão da diversidade peninsular, aproximando-nos. Não podemos apenas contentar-nos com a memória. Devemos construir o futuro. Esse sim, é o Iberismo de hoje.» In As Actuais Relações entre Portugal e Espanha, ESRT, 07/08



7 comentários:

Manuel Marques Pinto de Rezende disse...

numa época em que se fala cada vez mais em peculiariedades regionais, em que o poder local se torna cada vez mais um garante democrático contra certos abusos dos poderes centrais, retornar à discussão do iberismo é inútil e desapopriado.
mesmo em espanha a retórica já escolhe um diálogo mais virado para a autonomia regional.
mais depressa eu falaria em portugalização da galiza e de olivença (joking) do que em qualquer tipo de iberismo.

Luís Paulo (Estudante de Direito) disse...

Resposta ao Manuel:

Caro Manuel, não creio que tenhas lido, do excelente trabalho do nosso colega Vasco, mais do que o título que ele deu ao seu Artigo! Sinceramente, não acredito!...

Traquejado que estás na arte da retórica; inflado que trazias o ego das minhas palavras cordiais ao teu comentário de ontem ao meu artigo (sinceras e reitero-as, todas); obnubilou-se-te o espírito e acabaste por embrulhar o conceito com o pré-conceito e acabaste por revelar o que não era suposto saber-se, isto é, que nem te oporias de todo ao Iberismo se este fosse de hegemonia lusa. That's what you say joking – é o que esclareces gracejando!

Mas o Vasco merece considerações mais amplas e generosas ao seu trabalho. Por isso é para ele que agora me vou dirigir.

De facto amigo Vasco, é uma profunda injustiça tropeçar logo no primeiro conceito que nos aparece num trabalho – neste caso o Iberismo – por causa do peso pétreo de um pré-conceito/preconceito. Tanto mais que tu esclareces a data e o contexto em que foi redigido este magnífico trabalho.

Destaco o terceiro parágrafo que problematiza o «manuseamento sustentado dos recursos naturais, renováveis e não renováveis» para o qual é necessário, sim, uma estreita cooperação entre os dois países ibéricos.

No que diz respeito à utilização da nossa belíssima Língua Portuguesa só posso dizer este texto faria corar e roer de inveja muito escritor de best-seller que por aí anda (desses descartáveis que por aí pululam – essa nova raça hiper-híbrida jornalista-cantor-actor-entertainer-treinador-comentarista-futebolista-etc.).

Parabéns, Vasco!

Inês P. disse...

Belíssimo texto, Vasco! Se bem que duvido que algum dia a arogância espanhola e a desconfiança portuguesa cedam para dar lugar à "cooperação contínua" de que falas. A relutância contra a cooperação com os espanhóis ainda subsiste nas crenças e na memória colectiva do povo ("De Espanha, nem bom vento nem bom casamento!"); os episódios históricos ainda têm peso suficiente para que ambos os povos não engulam o orgulho e se disponham a colaborar.
Ainda assim, já há alguma colaboração para um melhor conhecimento da cultura vizinha e maior respeito para com a mesma - e não é só o exemplo galego. Aqui onde moro organizaram-se aulas de Espanhol para a população - e a professora, quando voltou de Espanha das férias, trouxe a larga admiração dos seus parentes, quando souberam da iniciativa, agradecendo aos alunos a atenção para com a sua língua e o seu reconhecimento.
Por isso, acho que não se pode dizer que este Iberismo de que falas seja irrealizável, mas tenho a certeza de que isso ainda custará muito a muita gente.

Vasco PS disse...

Devo confessar-vos que sempre encontrei este tema com grande curiosidade e espanto. O Iberismo evoluiu, certamente. O que importa, penso eu, é saber encontrar as vantagens da colaboração entre Portugal e Espanha. O senso comum leva muitas vezes à recusa de qualquer contacto; podemos aprender muito com os espanhóis, por exemplo, a não pintarmos sempre de cinza e preto a realidade portuguesa. Este texto é apenas um resumo de um grande estudo sobre a questão. As perspectivas pró-iberistas e anti-iberistas são diversas e consegui encontrar nelas sempre bons argumentos de parte a parte. E a ideia do iberismo não andará muito longe, no seu fundamento, da de europeísmo. Pergunto-me muitas vezes porque aceitamos tão facilmente sermos europeus e não ibéricos. E aqui, veja-se, sermos ibéricos e não espanhóis. O desconhecimento da realidade cultural da Península é vasto e, sim, motivo de vergonha.

Inês, o exemplo da aprendizagem do Espanhol em Portugal é óptimo; é uma realidade muito vista nos nossos dias. Só compreendendo a língua e cultura ibérica como um todo, deixaremos de viver com o medo da "invasão espanhola"; deveríamos construir o gosto em sermos portugueses por aquilo que somos e não por aquilo que não queremos ser. Por outro lado, não creio que o Iberismo actual, nem sequer o passado, tenha alguma vez significado a construção de uma cultura ibérica, por imposição da cultura do país vizinho. Puro engano. O iberismo é sim a expansão de todos os géneros culturais ibéricos, também, para que não se percam, para que se afirmem; e sim, a autonomia regional é um meio de difusão de uma cultura ibérica, não no sentido de isolamento, mas antes de protecção de diferentes meios culturais e reconhecimento dos envolventes.

Espero que tenham gostado do texto. Abraço

Manuel Marques Pinto de Rezende disse...

caro estudante de direito.
faço questão de tirar a questão a limpo e reaver a minha perdida horna bloguística!
não me encontrava de todo obnubilado com o seu simpático comentário, ainda que seja uma bem vinda variação da habitual crítica, ainda por cima para um blogue tão activo como o café odisseia (e digo-o com tanto orgulho como humildade).
no entanto, confesso que alguma preguiça de comentador influenciou o meu comentário.
tal como o próprio doc do vasco diz, a grande reaproximação entre a admnistração portuguesa e a espanhola deu-se so um governo português e espanhol altamente nacionalistas.
a verdade é que, a par da reaproximação desta vez pela mão da ue, já não me faz sentido sequer mencionar a iberização, visto que se cria uma situação "europeizante" no seu todo.
mais, digo-me até um anti-iberista, porque nunca um país pequeno como portugal conseguiria alguma dignidade soberana num caso de laços apertados entre as administrações dos dois países.
iberismo no direito? impossível, porque o nosso sistema penal é, a meu ver, superior. a constituição deles (os habitantes do reino da Espanha), o regime político e as instituiçõs democráticas são, no entanto, MIL vezes melhores. aí não seria iberismo. seria uma boa lição para nós.
iberismo na economia? com o fenómeno da globalização, sim, em parte. mas não com o proteccionismo perpetrado pelas políticas económicas espanholas. mercados livres e abertos. para todos.
iberismo cultural? esse eu apoio. mas porque, de facto, gosto da cultura andaluza. gosto da língua castelhana, e adoro a galiza. e as gentes de barcelona fazem lembrar as do porto. e, arrisco-me a dizer, as melhores obras de gil vicente poderão ter sido escritas, inicialmente, em castelhano.

agora, lacto sensu, o iberismo é uma definição ultrapassada. strictu sensu, e adaptando com reservas o termo à modernidade...
bem, nesse caso, não resta muito de iberismo para definir, não é?

Manuel Marques Pinto de Rezende disse...

PS: Metternic disse, uma vez, àcerca da possibilidade da formação de uma nação italiana, que a Itália não era um país, mas antes uma designação geográfica. também o é a palavra Espanha, apesar de em desuso.
No plano geografico somos todos espanhóis. a indevida apropriação do nome deu-se depois...

Luís Paulo (Estudante de Direito) disse...

Olá Manuel!

Quanto exagero meu amigo. O que é isso de "honra bloguística perdida"?!! Nem beliscada sequer. Aliás, a honra (bloguística ou qualquer outra) é algo que só o seu detentor pode decidir o que fazer dela. Jamais alguém pode decidir o que fazer com a honra dos outros.

Depois, não tive intenção alguma em ferir a tua dignidade ou sensibilidade, sequer. Como disse, acompanho o teu trabalho que muito admiro e talvez, no meu egoísmo (embora não se tratasse de um texto meu), esperasse da tua parte um comentário mais generoso, como o que acabaste de fazer agora, por exemplo. Só pelo comentário que acabas de fazer já basta para que me não sinta arrependido em ter dito o que disse. Mas acredita que não foi minha intenção ofender-te.

Mais, a prova de que nem sempre as palavras de um texto devem ser o único objecto de análise está patente neste teu último comentário. Com as palavras expressas comentas o Iberismo em si mesmo, mas nas palavras que não escreves dizes muito mais coisas importantes. Dizes, por exemplo que és uma pessoa educada e de boa formação moral (além da cultural, claro, mas esta é mais óbvia) já que consegues responder àquilo que tu consideras um (ainda que hipotético) ataque à tua "honra bloguística" com um polimento invejável.

Numa palavra: És um Gentleman, Manuel!

Espero que continues connosco!

Desejo-te um excelente ano de 2009!