quinta-feira, 4 de fevereiro de 2010

Era uma vez um alferes

Mais um passo na picada, menos um passo para Lisboa, dizia o alferes para consigo, convencendo-se de que, a cada passo, deixava para trás um pedaço de África. O ritmo do andamento dos homens, dispostos pelos trilhos em duas colunas, era, pois, o toque pendular do relógio que assinalava o tempo do regresso. Entretengas de tropa... modos de não pensar em nada e de ir negaceando os medos.

Este excerto constitui o primeiro parágrafo de um pequeno conto publicado em livro por um dos grandes mestres do romance português contemporâneo: Mário de Carvalho. Infelizmente, não tem no grande público o reconhecimento que, quanto a mim, merece.

É extensa a lista de obras publicadas por Mário de Carvalho, e para conhecê-las basta fazer uma pesquisa na Internet. Entre tantos, destaco os romances "Um Deus Passeando Pela Brisa da Tarde" e "Era Bom que Trocássemos umas Ideias sobre o assunto".

Mário de Carvalho licenciou-se em Direito, em 1969, pela Faculdade de Lisboa, antes de se dedicar ao jornalismo.

É tão pequenino o conto de que vos falo, "Era uma vez um alferes", que o autor o publicou conjuntamente com outros dois - "A última cavalgada" e "Há bens que vêm por mal" - num mesmo livro intitulado "Os Alferes", da editorial Caminho. Por isso o escolhi, para uma primeira aproximação ao escritor e ao seu estilo único (para aqueles que o não conhecem, claro), insusceptível de se enquadrar numa típica escola literária. Qualquer estudante de direito, habituado a ler resmas de páginas por dia, lê qualquer um destes contos em menos de um fósforo.

Segue-se, pois, mais um pequeno excerto que revela o despoletar da acção do conto anunciado:
Um estalido metálico, seco, nítido, deflagrou no ar. A fila imobilizou-se. Meio dobrados sobre as automáticas, os homens esquadrinhavam todos os recantos, numa tensão feroz e atenta.

Bem a meio da picada, o alferes não se moveu. Estava parado, muito direito, os dois braços ligeiramente afastados do corpo, o rosto petrificado fito em frente. Suspendia a arma pelo tapa-chamas como quem assegura um contrapeso para um problemático equilíbrio.

― Pisei uma mina! Pisei uma mina, caraças! ─ repetiu, quase sem mexer os lábios para o furriel que se aproximava, inquieto, e havia nas palavras do alferes um tom de profunda tristeza, mais que grave ou compenetrado.
― Meu alferes, por amor de Deus, não se mexa ─ agitou-se o outro com largos gestos tranquilizadores.

Durante uns momentos, o entendimento do alferes ficou totalmente embaciado, como se ele estivesse muito longe dali, imune à agitação em volta.
Esta é a minha sugestão de leitura para o final de semestre. Leiam o conto logo que possam e espero que gostem e se divirtam porque (já sabem) o melhor é aquele que se diverte mais!

Sem comentários: