António Menezes Cordeiro - Do abuso do direito: estado das questões e perspectivas *
IV. As doutrinas do abuso do direito: 14. Generalidades: as teorias; 15. As terorias internas; a) Versões comuns; 16. Segue; b) o axiologismo subjacente; 17. As teorias externas; 18. Posição adoptada; a disfuncionalidade intra-subjectiva e o papel do sistema. V. Aspectos do regime e tendências: 19. O abuso como concretização da boa fé; 20. Âmbito, conhecimento oficioso, objectividade e consequências; 21. Balanço e tendências recentes.
1. INTRODUÇÃO (1)
1. Actualidade do tema
I. O abuso do direito é um instituto multifacetado. Encontramo-lo, hoje, no dia-a-dia dos nossos tribunais, para resolver questões deste tipo:
RLx 22-Jan.-2004: o senhorio não faz as devidas obras; autoriza o inquilino a fazê-las; este muda uma pequena estrutura, vindo o senhorio, com esse fundamento, mover um despejo; não pode: abuso do direito (2);
RLx 22-Abr.-2004: temos um trespasse anterior ao Decreto-Lei n.º 64-A/2000, nulo por falta de escritura pública; não pode ser invocada a sua nulidade, para evitar o pagamento de parte do preço, ainda em falta: abuso do direito(3);
STJ 30-Out.-2001: num contrato-promessa com um prazo de dois anos para a escritura, verifica-se que um dos promitentes deixa passar 15 anos sem pagar as prestações que lhe incumbiam; não pode vir requerer a execução específica: abuso do direito (4);
RLx 2-Mar.-2004: um condómino que não queira assinar a acta da assembleia não pode prevalecer-se da não-assinatura para impugnar as deliberações: abuso do direito (5);
RCb 27-Jan.-1998: não pode um inquilino exigir, ao senhorio, obras dispendiosas quando pague uma renda insignificante: abuso do direito (6).
No primeiro caso (despejo por obras autorizadas) decidiu-se contra o artigo 64.º/1, d), do RAU; no segundo (trespasse nulo por falta de forma), contra o artigo 220.º; no terceiro (execução específica após 15 anos de inércia), contra os artigos 830.º/1 e 809.º; no quarto (impugnação da deliberação por deficiência da acta), contra o artigo 1433.º/1; no quinto (pedido de obras com renda insignificante), contra os artigos 1031.º, b) e 12.º/1 e 13.º/1 do RAU. Em todos eles prevaleceu o artigo 334.º.
II. Os exemplos alinhados documentam, sucessivamente, cinco subinstitutos, ausentes dos nossos manuais até há bem pouco tempo: venire contra factum proprium, inalegabilidade formal, suppressio, tu quoque e desequilíbrio no exercício. Todos eles traduzem concretizações de uma ideia tradicional: a da proibição do abuso do direito. Finalmente: todos apelam ao adensamento de um princípio clássico: a boa fé.
III. O tema do abuso é actual: perfeitamente. Podemos ainda adiantar que se trata de uma área sensível, que todo o jurista prático deve acompanhar e aprofundar. Perante a nossa jurisprudência — os acórdãos relevantes contam-se por centenas, como abaixo melhor veremos — qualquer pretensão aparentemente apoiada em leis estritas pode ser desamparada, com base em abuso do direito.
E todavia, todas as decisões elencadas se apresentam como justas, adequadas e mesmo … previsíveis. A sua explicação última poderá ser complexa: mas será razoável e, sobretudo: inteiramente científica. Estamos, pois, diante de uma realidade que, mais do que revisitada: deve ser explorada.
[...]
Notas:
(*) O presente inédito destinar-se-á aos Estudos em Honra do Prof. Doutor António Castanheira Neves.
(1) Os artigos sem indicação de fonte pertencem ao Código Civil de 1966, a que também chamamos Código VAZ SERRA. As nossas obras Da boa fé no Direito civil (1985, 2.ª reimp., 2001) e Tratado de Direito civil português I/1, 3.a ed. (2005), I/2, 2.a ed. (2002), I/3 (2004) e I/4 (2005), são citadas apenas pelos títulos abreviados (Da boa fé e Tratado), sem quaisquer outras referências.
(3) RPt 22-Abr.-2004 (SALEIRO DE ABREU), CJ XXIX (2004) 2, 188-191 (190/II).
(4) STJ 30-Out.-2001 (PAIS DE SOUSA), CJ/Supremo IX (2001) 3, 102-104 (103/II).
(5) RLx 2-Mar.-2004 (ANDRÉ DOS SANTOS), CJ XXIX (2004) 2, 69-71 (70/II).
(6) RCb 27-Jan.-1998 (SOARES RAMOS), CJ XXIII (1998) 1, 16-18 = BMJ 473 (1998), 569 (o sumário).
[...]
Fonte: Site da Ordem dos Advogados (www.oa.pt)
Sem comentários:
Enviar um comentário