domingo, 7 de março de 2010

Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça n.º 3/2010: Fixação de Jurisprudência

Acórdão muito interessante, do Supremo Tribunal de Justiça, que fixa jurisprudência relativa à qualificação do crime de furto, praticado nos transportes públicos sobre bens móveis dos utentes.


Aconselho vivamente a sua leitura e, para os que tiverem interesse e possibilidade disso, uma discussão académica sobre a(s) matéria(s) versada(s).



Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça n.º 3/2010

Processo n.º 552/09.0YFLSB

Relator: MANUEL BRAZ

Votação: UNANIMIDADE

Meio Processual: ACÓRDÃO DE FIXAÇÃO DE JURISPRUDÊNCIA

Decisão: FIXAR JURISPRUDÊNCIA

Referência de Publicação: DR Iª SÉRIE, 45, 05-03-2010, PÁG. 627-631


Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:

AA interpôs recurso extraordinário para fixação de jurisprudência do acórdão da Relação de Lisboa proferido em 4 de Junho de 2008 no processo nº 10720/07, da 3ª secção, onde foi condenado, com os seguintes fundamentos:

-O acórdão recorrido encontra-se em oposição com o acórdão da mesma Relação proferido, em 4 de Março de 2008, no processo nº 127/08, da 5ª secção.

-Efectivamente, aquele interpretou o segmento da alínea b) do nº 1 do artigo 204º do Código Penal «transportada por passageiros utentes de transporte colectivo» no sentido de abranger os objectos pessoais “levados ou trazidos” pelos utentes dos transportes públicos.

-E este interpretou o mesmo segmento da referida norma no sentido de não abranger os objectos pessoais “levados ou trazidos” pelos utentes dos transportes públicos.

-Ambos os acórdãos foram proferidos no domínio da mesma legislação.

-E transitaram em julgado.

Por acórdão de 12 de Fevereiro de 2009, o Supremo Tribunal de Justiça julgou verificada a oposição de julgados a que se refere o nº 1 do artigo 437º do Código de Processo Penal e ordenou o prosseguimento do recurso.

Foram notificados os sujeitos processuais interessados – o recorrente e o Ministério Público –, nos termos e para os efeitos do artigo 442º, nº 1, do mesmo código, tendo ambos apresentado alegações, concluindo assim:

O primeiro:

-O segmento da alínea b) do nº 1 do artigo 204º do Código Penal “transportada por passageiros utentes de transporte colectivo” não abrange os objectos pessoais “levados ou trazidos” pelos utentes desses transportes.

-A interpretação feita no acórdão recorrido vai além do sentido máximo e possível da letra da lei.

-Essa interpretação é proibida pelo nº 3 do artigo 1º do Código Penal.

-E inconstitucional, por violar a norma do artigo 29º, nº 1, da Constituição.

O segundo:

-A expressão «coisa transportada por passageiros utentes dos transportes colectivos» utilizada na alínea b) do nº 1 do artigo 204º do Código Penal abrange as coisas que o passageiro leva consigo e sobre as quais tem o domínio efectivo.

-Esse segmento da norma tem a sua razão de ser na menor vigilância sobre as coisas e na maior fragilidade da guarda, em resultado das situações de grande aglomeração de pessoas e confusão que se verificam nos transportes colectivos e criam condições especialmente propícias à prática de furtos.

-A realidade com que hoje somos confrontados em matéria de facilidades, rapidez e segurança dos meios de transporte é bem diferente da que se vivia no século XIX e até meados do século passado, não havendo actualmente fundamento para, nesta matéria, distinguir entre coisas levadas e coisas transportadas pelos utentes de transportes colectivos.

-Mesmo que se acentue o valor da segurança e confiança nos transportes, os problemas que se levantam são idênticos em ambos os casos, não havendo razões para uma interpretação restritiva da norma, naquele segmento.

Colhidos os vistos, o processo foi apresentado à conferência do pleno das secções criminais, cumprindo decidir.

Fundamentação:
1. Não se pode deixar de concordar com a decisão da secção sobre a verificação da oposição de julgados.

Na verdade, aplicando a norma referida a uma situação de facto idêntica, os acórdãos em confronto chegaram a soluções opostas.

No acórdão recorrido estavam em causa os seguintes factos: o recorrente, que se encontrava no interior de um “eléctrico” da carreira nº 15 da ..., em Lisboa, numa das paragens, aproveitando a confusão que se gerou com a entrada de passageiros no veículo, retirou ao ofendido a carteira que este trazia no bolso esquerdo das calças, dentro da qual se encontrava, além de um cartão de crédito e de outros documentos, a quantia de € 145, com intenção de se apropriar dessa carteira e dos bens que aí houvesse.

E decidiu-se que essa factualidade preenchia a previsão da alínea b) do nº 1 do referido artigo 204º, concretamente do segmento coisa móvel alheia «transportada por passageiros utentes de transporte colectivo», no entendimento de que o termo «transportada» “tem aqui o significado de ‘levada’, ‘tida’, ‘trazida’ por passageiros utentes de transporte colectivo”.

No acórdão fundamento os factos considerados eram os seguintes: dentro de um “eléctrico” da mesma carreira, o arguido, enquanto a arguida pressionava com o seu corpo a ofendida contra ele e aproveitando-se do facto de esta, no meio de um grupo de várias pessoas, se preparar para tirar bilhete da respectiva máquina, abriu-lhe uma bolsa que trazia pendurada ao pescoço e, do seu interior, tirou, com intuitos apropriativos, a quantia de € 400.

E decidiu-se que esses factos não eram subsumíveis àquela norma, que terá sempre em vista a bagagem, ainda que de mão, que se transporta.

2. Há por isso que passar à resolução do conflito.

O que tem de ser decidido é se o furto de coisa móvel alheia que um passageiro utente de um meio de transporte colectivo leva consigo e com a qual tem contacto físico, como uma carteira de homem guardada num bolso do vestuário (caso do acórdão recorrido) ou o dinheiro que se guarda numa bolsa pendurada ao pescoço (caso do acórdão fundamento), é qualificado pela circunstância prevista na alínea b) do nº 1 do artigo 204º do Código Penal.

O texto da norma, na versão vigente à data da prolação de ambos os acórdãos, era o seguinte: «Transportada em veículo ou colocada em lugar destinado ao depósito de objectos ou transportada por passageiros utentes de transporte colectivo, mesmo que a subtracção tenha lugar na estação, gare ou cais».

Esta redacção foi alterada pela Lei nº 59/2007, de 4 de Setembro, sendo este o texto actual: «Colocada ou transportada em veículo ou colocada em lugar destinado ao depósito de objectos ou transportada por passageiros utentes de transporte colectivo, mesmo que a subtracção tenha lugar na estação, gare ou cais».

Estando em causa o segmento «transportada por passageiros utentes de transporte colectivo», a alteração não interfere directamente com a questão a decidir.

No acórdão fundamento, depois de se citar jurisprudência num e noutro sentido e de se fazer referência a algumas posições da doutrina, escreveu-se: “quer se acentue a vertente da confiança nos transportes e meios que lhes dão acesso (cais, estações, gares) quer se realce a protecção contra a fragilidade causada pelos comuns problemas de viajar, o que estará sempre em causa é o que se transporta, a bagagem, quer num sentido mais vasto que inclua todos os volumes maiores ou menores que se transportam quer ainda a que é usual designar por bagagem «de mão»: uma pasta, um saco de tipo variado, mas sempre algo que seja exterior (…) ao seu detentor. Aí se não inclui a carteira que «se leva» no bolso do casaco ou o fio que se leva ao pescoço, por exemplo, ou ainda uma determinada quantia em dinheiro, em notas, que «se leva» no bolso das calças”. E, em adesão à posição defendida em acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 14 de Outubro de 1993 (sumário em www.dgsi.pt, nº convencional JSTJ 00021532) concluiu-se que para se verificar a qualificativa em discussão “é preciso que o objecto do furto tenha uma certa autonomia – uma distância física (…) – relativamente ao passageiro utente e que se não incorpore nele próprio”.

O acórdão recorrido fundamentou a solução a que chegou – a de considerar verificada a circunstância qualificadora em análise – apenas da forma referida em 1.

3. A questão a resolver foi já repetidamente debatida.

Na versão originária do Código Penal de 1982, onde à alínea b) do nº 1 do actual artigo 204º, no segmento em apreciação, correspondia com exactidão a alínea g) do nº 1 do artigo 297º, no sentido do acórdão recorrido podem ver-se as seguintes decisões:

acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 31 de Março de 1993: o furto de uma carteira levada num bolso do vestuário por um passageiro de transporte colectivo é qualificado pela circunstância da alínea g) do nº 1 do artigo 297º (sumário em www.dgsi.pt, nº convencional JSTJ00018434);

acórdão da Relação de Lisboa de 17 de Outubro de 1990: o furto de uma carteira tirada do interior de uma mala levada a tiracolo por passageiro utente de transporte colectivo é qualificado pela mesma circunstância (sumário em www.dgsi.pt, nº convencional JTRL00017594);

acórdão da Relação de Lisboa de 27 de Junho de 1990: “a qualificação do furto resultante da alínea g) do nº 1 do artigo 297º do Código Penal (…) abrange, não só as situações respeitantes aos objectos transportados pelos passageiros como carga, como também aquelas em que os objectos subtraídos são levados pelo passageiro consigo, designadamente no vestuário ou junto de si” (CJ, XV, Tomo III, páginas 173 a 174);

Acórdão da Relação do Porto de 16 de Dezembro de 1987: “o verbo «transportar» está utilizado, na referida alínea, no seu sentido comum, qual seja o de «levar de um lugar para o outro», ocorrendo a agravação em todos os casos em que a coisa subtraída é transportada e em trânsito, por um lugar onde tal subtracção é especialmente agravada” (BMJ 372º, página 470).

No sentido do acórdão fundamento decidiram:

O Supremo Tribunal de Justiça no ali citado acórdão de 14 de Outubro de 1993: para que se verifique a agravante da alínea g) do nº 1 do artigo 297º importa que a coisa transportada e objecto do furto tenha uma certa autonomia relativamente ao passageiro utente e que não se incorpore nele próprio como é o caso da carteira transportada no bolso;

o acórdão da Relação de Lisboa de 14 de Dezembro de 1988: “não se verifica, no crime de furto, a agravante qualificativa prevista no artigo 297º, nº 1, alínea g), do Código Penal, se a coisa foi subtraída da carteira de um utente dos transportes colectivos” (BMJ 382º, página 520).

Já no domínio da versão do código resultante da revisão operada pelo DL nº 48/95, de 15 de Março, a qual, neste ponto, como se disse, se mantém inalterada, recensearam-se as seguintes decisões, todas no sentido do acórdão recorrido:

acórdão da Relação de Lisboa de 2 de Outubro de 1996: é qualificado, nos mesmos termos, o furto de coisas que se encontravam no interior da carteira levada a tiracolo por passageira de transporte colectivo (sumário em www.dgsi.pt, nº convencional JTRL00007462);

acórdãos da Relação de Lisboa de 10 de Maio de 2000 (sumário em www.dgsi.pt, nº convencional JTRL00028391) e de 12 de Junho de 2002 (processo nº 3145/02 da 3ª secção): o furto da carteira que um passageiro de transporte colectivo leva no bolso é qualificado pela circunstância da alínea b) do nº 1 do artigo 204º;

acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 11 de Janeiro de 2007, proferido no processo nº 4692/06 da 5ª secção: a subtracção, com intuitos apropriativos, da bolsa, contendo um telemóvel e dinheiro, que o passageiro de um comboio leva à cintura, é qualificada pela circunstância da alínea b) do nº 1 do artigo 204º (Sumários Internos do Supremo Tribunal de Justiça);

acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 13 de Fevereiro de 2008, proferido no processo nº 4558/07 da 3ª secção, onde se considerou:

“A expressão utilizada pelo legislador «coisa transportada por passageiros utentes de transporte colectivo» revela que pretende abranger todas as coisas que é o próprio passageiro que transporta, sob a sua responsabilidade e sob o seu domínio efectivo (ao seu alcance directo), não as que eventualmente confia à empresa transportadora ou que deposita nos locais próprios dos meios de transporte.

Desse conjunto restrito de coisas que o passageiro normalmente traz consigo, que integram o seu ‘património inseparável’ em qualquer deslocação, e que estão sob o seu directo domínio e alcance, fazem parte, desde logo, as coisas que leva dentro da roupa, nomeadamente nos bolsos (como as carteiras de homem, porta-cheques, porta-moedas, porta-chaves, telemóveis, transístores, mp3 e outros aparelhos electrónicos, etc.), mas também os objectos sobre os quais ele mantém uma ligação física ou corporal (como as pastas, as carteiras de senhora, os computadores portáteis), por serem levados à mão, pois todos esses objectos integram o mesmo núcleo restrito de objectos pessoais que tanto podem ser levados nos bolsos, como à mão, como metidos dentro de recipientes transportados à mão, ao ombro ou às costas (carteiras, mochilas, sacolas, etc.), mas sempre ao alcance imediato do domínio, da disponibilidade, da mão do passageiro” (Sumários Internos do Supremo Tribunal de Justiça).

4. Na vigência do Código Penal de 1886, nos termos do nº 5 do artigo 426º, qualificava o furto a circunstância de ser praticado «na estrada ou caminho público, sendo de objectos que por ele forem transportados».

Essa norma, com formulação ligeiramente diferente mas de igual alcance, foi assim comentada por Luís Osório:

“O fundamento desta agravante é a menor vigilância que pode ser exercida sobre as coisas, quando elas estão sendo transportadas pelas estradas ou caminhos públicos.
Pronunciada é a tendência da doutrina e das legislações para a eliminação desta qualificação cuja razão de ser desapareceu perante as facilidades, a rapidez e a segurança dos diversos meios de transporte e comunicação.

Os ladrões que infestavam os caminhos públicos eram muito temidos dos romanos, chegando em alguns casos a ser-lhes aplicável a pena capital.

(…) não basta o lugar em que o furto é cometido para dar lugar à agravante; é ainda preciso que a coisa esteja a ser transportada por essa estrada ou caminho.
(…).
Não basta, porém, que a coisa seja levada, é preciso que seja transportada. O furto da carteira de um viajante não está aqui incluído, conquanto o esteja o furto da mala do tesoureiro de finanças que transporta numerário para ou da sede do distrito” (Notas ao Código Penal Português, Volume IV, 1925, páginas 92 e 93).

5. É este elemento histórico que tem servido de arrimo àqueles que, como os subscritores do acórdão fundamento, defendem que o termo «transportada», no segmento em causa, deve ser interpretado no sentido restrito, referindo-se a coisa fisicamente separada da vítima.

Mas a norma da alínea b) do nº 1 do artigo 204º, se tem o seu fundamento histórico próximo na do nº 5 do artigo 426º do Código Penal de 1886, tem um campo de aplicação distinto. E a distinção não reside apenas, como já se acentuava no citado acórdão da Relação de Lisboa de 27 de Junho de 1990, na deslocação da «mesma protecção legal da via para o meio de transporte», tendo antes criado, «com o inequívoco propósito de ampliar o âmbito de protecção das coisas móveis em transporte», novos casos de agravação.

Esse propósito legislativo parte da nova realidade social, em que o desenvolvimento que se operou ao nível dos meios de transporte, com a sua multiplicação e utilização massiva por parte das pessoas, deu lugar a novas vulnerabilidades e à correspondente necessidade de tutela acrescida para os bens que por aí transitam. Nestes novos tempos, não são apenas as coisas que estão a ser transportadas em veículo que estão numa situação de maior fragilidade, mas também as que os passageiros utentes dos meios de transporte colectivo trazem consigo.

De facto, como se nota no referido acórdão deste Supremo Tribunal de 13 de Fevereiro de 2008, “a normal aglomeração de gente e ambiente de confusão que tantas vezes se regista dentro dos meios de transporte ou nas estações, o desconhecimento e incerteza de muitos passageiros quanto à localização, o horário ou o concreto meio de transporte a escolher e, nas viagens longas, o cansaço inevitável que se apodera da generalidade dos passageiros são tudo factores que propiciam a delinquência contra as coisas transportadas pessoalmente pelos passageiros, nomeadamente por parte dos ‘carteiristas’, que se movem particularmente à vontade nestes ambientes”.

Segundo esse acórdão, “subjacente à previsão do artigo 204º, nº 1, al. b), do Código Penal (…) existe uma clara intenção, por parte do legislador, de garantir uma confiança generalizada nos transportes e comunicações, por meio de um reforço da tutela penal da segurança na sua utilização, e que se funda numa ideia de maior exposição ou vulnerabilidade das coisas transportadas ou depositadas à apropriação ilícita, quer porque elas não estão sob a guarda do seu proprietário ou possuidor, quer porque este último, embora podendo vigiá-las, está submetido a circunstâncias em que o exercício dessa vigilância pode ser perturbado ou seriamente reduzido”.

Também para o Prof. Faria Costa é nessa maior fragilidade que reside o fundamento da agravação:

“Pensamos que a razão de ser deste normativo se prende com uma menor vigilância exercida sobre as coisas nas circunstâncias descritas. Dir-se-ia que há uma maior fragilidade na guarda. Fragilidade essa resultante do entrecruzar de vários factores: a) rarefacção da atenção sobre as coisas na medida em que o centro da preocupação, não poucas vezes, é canalizado, justamente, para as preocupações do próprio acto de viajar; b) diminuição também da atenção sobre a guarda das coisas por mor do cansaço, da azáfama e da própria dispersão do ir em viagem; c) aumento, em geral, da tensão dispersiva; d) incremento da intensidade das acções contra o património, precisamente devido ao conhecimento das manifestas diminuições anteriormente delineadas. É, por conseguinte, o cruzar daquelas variáveis – diminuição das defesas e incremento dos ataques – que faz crescer, em raiz exponencial, o efeito de fragilidade na guarda das coisas transportadas segundo os parâmetros descritos na lei” (Comentário Conimbricense do Código Penal, Tomo II, página 59).

Como parece evidente, essa “maior fragilidade na guarda”, decorrente da “diminuição das defesas” e do “incremento dos ataques”, existe tanto em relação a uma pasta que um passageiro utente de um meio de transporte colectivo leva num autocarro, separada de si, pousada, por exemplo, num suporte para bagagens (o acórdão fundamento, como se viu, aceita que o furto de uma pasta, nessa situação, é qualificado pela circunstância em apreciação) como no que se refere à carteira que se encontra no interior da bolsa que traz a tiracolo ou num dos bolsos do vestuário, numa situação em que segue de pé, rodeado de várias outras pessoas, algumas em contacto físico consigo, devido ao elevado número de passageiros.

É por ser assim que aquele autor, depois de assim caracterizar a razão de ser da norma, ao delimitar o alcance dos conceitos “estação”, “gare” e “cais”, acaba por marcar posição no sentido do acórdão recorrido, considerando qualificado o furto por A da carteira de B, desde que ocorrido dentro de uma estação: “Imaginemos que A furta a B a carteira nas escadas que dão acesso à estação. Comete A um furto qualificado ratio materiae que se analisa? Cremos que não. As escadas são ainda lugares de acesso que não devem ser consideradas integrantes da própria noção de estação. E se tal facto tiver acontecido no átrio? Neste caso, a nossa resposta vai indesmentivelmente no sentido afirmativo” (ob. cit., página 61).

Note-se que a alínea b) do nº 1 do artigo 204º, na versão aplicada por ambos os acórdãos em confronto, a anterior à vigência da Lei nº 59/2007, contempla a subtracção de coisa móvel alheia em três situações distintas: «transportada em veículo», «colocada em lugar destinado ao depósito de objectos» e «transportada por passageiros utentes de transporte colectivo, mesmo que a subtracção tenha lugar na estação, gare ou cais». E esta última situação, como claramente decorre do uso da locução mesmo que, abrange quer o caso de subtracção de coisa transportada pelo passageiro dentro do meio de transporte quer o de subtracção de coisa transportada pelo passageiro na estação, gare ou cais. Ora, se, como decidiu o acórdão fundamento, na terceira situação coubesse apenas “o que se transporta”, a bagagem, ainda que “de mão”, como uma pasta, “mas sempre algo que seja exterior (…) ao seu detentor”, então teríamos de concluir pela completa inutilidade da inclusão na norma da previsão da subtracção de coisa transportada por passageiro dentro do meio de transporte, na medida em que a previsão dessa subtracção já constaria do segmento «transportada em veículo», e, em consequência, que o legislador não soube exprimir o seu pensamento em termos adequados, quando devemos presumir exactamente o contrário, em obediência à regra do nº 3 do artigo 9º do Código Civil.

Vai neste sentido a seguinte nota de Paulo Pinto de Albuquerque:

“A circunstância da coisa transportada por passageiros utentes de transporte colectivo (…) visa a situação de facto em que se verifica a subtracção de uma coisa que a pessoa utente do transporte colectivo traz consigo (exemplo disso são os furtos de carteirista no metro), uma vez que as coisas transportadas pelo utente no transporte público já estão abrangidas pela primeira parte da alínea b) do n° 1” (Comentário do Código Penal, página 559).

Fazendo eco da posição defendida por Guilhermina Marreiros em escrito publicado na Revista do Ministério Público, ano 6º, nº 24, páginas 101 a 107, o acórdão fundamento nega que seja justificação para a agravação a “maior facilidade” no cometimento de furtos no ambiente de confusão que tantas vezes se verifica nos meios de transporte, porque “por essa ordem de ideias, o furto seria também qualificado se cometido nas escadas de acesso à estação de metropolitano, na fila de paragem do autocarro, num centro comercial ou na entrada e saída de um estádio de futebol”.

Mas, a diferença de tratamento das subtracções ocorridas nos meios de transporte e em determinadas zonas que lhe estão afectas e as verificadas em qualquer dos restantes locais referidos, agravando as primeiras, como aqui se entende, e não as segundas, é uma questão de política criminal, que nem sequer pode ser criticada à luz do artigo 18º, nº 2, da Constituição, visto revelar-se fundada, atenta a importância social dos meios de transporte colectivo, de cuja utilização a maioria das pessoas não pode prescindir, seja diariamente, seja apenas em certas ocasiões. Vale aqui o que a propósito se afirmou no já falado acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 13 de Fevereiro de 2008:

“É claro que todas as situações de ajuntamento de pessoas (como os grandes espectáculos, as feiras, e até as manifestações e as procissões) de alguma forma facilitam essa prática criminosa. Mas a particular protecção concedida ao património dos passageiros de transportes colectivos assenta na já assinalada opção, razoável e fundamentada, de atribuir uma tutela penal reforçada aos transportes, pelo papel essencial e indispensável que eles desempenham na vida quotidiana das pessoas, sobretudo nos grandes centros urbanos, mas não só”.

E se é verdade que “as escadas de acesso à estação do metropolitano” e “a fila da paragem do autocarro” são locais em que os utentes dos transportes colectivos terão de transitar ou permanecer, não pode esquecer-se que são locais abertos, que ou fazem parte das vias públicas ou pouco se diferenciam delas, onde, pois, se não justifica a protecção de uma menor vigilância sobre as coisas que se transportam.

Como última nota sobre este ponto, a indicada alteração introduzida no texto da alínea b) do nº 1 do artigo 204º pela Lei nº 59/2007, não incidindo embora directamente sobre o segmento em análise, não deixa de constituir um dado que dá conforto à posição assumida no acórdão recorrido, na medida em que a extensão do âmbito de aplicação da norma à coisa «colocada» em veículo pode ser vista como a manifestação do propósito de conferir protecção acrescida, pela via da agravação, a todas as coisas que se encontrem em meio de transporte, colectivo ou não.

Deve, pois, concluir-se, como no acórdão recorrido, que essa norma, no segmento «transportada por passageiros utentes de transporte colectivo», abrange a coisa que o passageiro traz consigo e com a qual tem contacto físico, como a que transporta na mão, num bolso do vestuário, a tiracolo, ao pescoço ou à cintura.

6. O recorrente defende que esta interpretação, que classifica de extensiva, é inconstitucional, por violar, além do artigo 1º, nºs 1 e 3, do Código Penal, o artigo 29º, nº 1, da Constituição. Pretende certamente referir-se à analogia, que é a figura cuja proibição se pode encontrar nas referidas normas.

Mas, no caso, não se recorreu à analogia, que, nas palavras do Prof. Figueiredo Dias, consiste na “aplicação de uma regra jurídica a um caso concreto não regulado pela lei através de um argumento de semelhança substancial” (Direito Penal, Parte Geral, Tomo I, 2ª edição, página 187).

O que se fez, na consideração de que o verbo «transportar» tem mais de um sentido, podendo significar “conduzir ou levar uma carga de um lado para outro” ou simplesmente “levar uma coisa de um lado para outro”, foi eleger de entre os seus sentidos possíveis um deles, aquele que se considerou “jurídico-penalmente imposto”, em função do “fim almejado pela norma”, operação que tem o apoio do mesmo autor:

(…) “o legislador penal é obrigado a exprimir-se através de palavras, as quais todavia nem sempre possuem um único sentido, mas pelo contrário se apresentam quase sempre polissémicas”, pelo que “o texto legal se torna carente de interpretação (e neste sentido, atenta a primazia da teleologia legal, de concretização, complementação ou desenvolvimento judicial), oferecendo as palavras que o compõem, segundo o seu sentido comum e literal, um quadro (e portanto uma pluralidade) de significações dentro do qual o aplicador da lei se pode mover e pode optar sem ultrapassar os limites legítimos da interpretação” (ob. cit., página 188).

Não há, pois, nesta interpretação violação das disposições legais apontadas, designadamente da norma constitucional.

Decisão:

Em face do exposto, decidem os juízes que compõem o pleno das secções criminais do Supremo Tribunal de Justiça em:

a) negar provimento ao recurso;

b) fixar a seguinte jurisprudência: «a norma da alínea b) do nº 1 do artigo 204º do Código Penal, no segmento “transportada por passageiros utentes de transporte colectivo”, abrange as coisas que esses passageiros trazem consigo, constituam ou não bagagem».

Custas pelo recorrente, fixando-se em 5 UC a taxa de justiça.

Lisboa, 4 de Fevereiro de 2010

Manuel Braz (Relator)
Carmona da Mota
Pereira Madeira
Santos Carvalho
Henriques Gaspar
Rodrigues da Costa
Santos Monteiro
Arménio Sottomayor
Santos Cabral
Oliveira Mendes
Souto de Moura

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