domingo, 15 de novembro de 2009

O Curioso Impertinente

Embora com uma semana de atraso, aqui estou para dar cumprimento à promessa de revelar o autor e a obra a que pertence o excerto publicado no passado dia 5 no Post com o título "Correspondência muito curiosa".

Não houve voluntários (possivelmente nem interessados) em identificar a obra, por isso vou finalmente revelar a misteriosa informação.

Trata-se pois de um excerto do episódio - disposto por três capítulos - da Novela do Curioso Impertinente da primeira parte do livro "O Engenhoso Fidalgo D. Quixote de La Mancha", de Miguel de Cervantes.

Pois é, como lhes tinha dito, as personagens centrais desta história são outras que não o D. Quixote e Sancho Pança, já que se trata de uma história contida num velho cartapácio e lida numa taberna manchega aos viajantes ali presentes, entre os quais se contavam os dois heróis.

É, como referi, uma história pouco conhecida mas bastante moralista. Parecerá desajustada nos dias de hoje mas talvez o não seja tanto como parece, se analisada com cuidado.

Por razões práticas decidi separar a história em três ficheiros distintos, correspondentes aos três capítulos pelos quais se distribui a Novela do Curioso Impertinente. Estarão disponíveis para download no final deste texto. Disponibilizarei ainda o link para quem tiver interesse em obter a obra completa em dois volumes (1ª e 2ª partes) disponíveis na página eBooks do blogue Biblioteca Virtual Estudante.

Para os que, como eu, não prescindem da leitura pelos originais, sentindo o peso dos volumes nas mãos e deixando-se inebriar pelo cheiro das encadernações, recomendo-lhes a leitura (por aquisição ou requisição em bibliotecas) da versão de Aquilino Ribeiro editada pela Bertrand (ISBN 972-25-1133-5).

A Bertrand reeditou a obra em 2000 depois de se encontrar esgotada desde 1967. Passei anos a tentar encontrar os três volumes em que o livro estava distribuído, nos alfarrabistas e lojas de livros usados do Porto e da Capital, sem sucesso (não havia ainda Internet).

Até um dia. Um dia, já estava eu a trabalhar no Porto, em que me desloquei a Lisboa por motivos profissionais, entrei, pouco convicto, diga-se, numa dessas lojas de livros usados, muito pequena, com as paredes forradas a livros de alto a baixo, com umas estantes no centro da pequena sala deixando um corredor muito exíguo em toda a volta desta, dificultando a consulta dos livros (até porque a luz disponível é ínfima).

Entrei na loja, aguardei uns segundos para que os as minhas pupilas se dilatassem o suficiente de forma a conseguirem ver na penumbra reinante no interior, e olhei à minha direita donde se destacava o vulto alto e esguio do dono da loja.

Há muito tempo que ali não ia, desde que me transferi de Lisboa para o Porto; o senhor habituara-se a ver-me por ali quase todas as semanas e por vezes mais do que uma vez, e certamente estranhara a ausência de anos. Mas reconhecemo-nos mutuamente, embora evitássemos o cumprimento efusivo (típico de quem se não vê há muito tempo, mesmo não sendo amigos íntimos), contentando-nos com o informal bom-dia.

De seguida perguntei (por perguntar, pois como disse a minha convicção era nula) se tinha os três volumes do D. Quixote, da Bertrand, tradução de Aquilino Ribeiro. O senhor olhou para mim durante uns segundos e encaminhou seguidamente o olhar confuso (talvez por lhe parecer estranha a forma como lhe fiz a pergunta, como se fosse a primeira vez que ali entrava, quando a verdade é que no passado tantas vezes lhe fizera a mesma pergunta, ou a variante dela: "então, já conseguiu alguma coisa?") para o espaço exíguo e escuro situado entre uma parede forrada de livros e a estante existente ao centro da loja. Só no momento em que homem apontou para o local é que eu me apercebi que havia ali mais alguém para além de nós os dois. Ao mesmo tempo que apontava foi dizendo: «Por acaso tenho, são os que aquele senhor tem na mão!»

Olhei na direcção apontada e nem queria acreditar no que os meus olhos viam... aquilo só podia ser um sonho! Andei anos atrás daqueles livros e quando os encontro estão na mão de outra pessoa que se adiantou alguns minutos?! Era difícil de engolir...

O rapaz levantou-se (estava ajoelhado a perscrutar a estante do centro da loja); pelo meu ar e pela hesitação do dono da loja já se tinha apercebido de tudo; caminhou na minha direcção, com os livros na mão direita, em silêncio; mas por fim falou, e quando eu pensava, num súbito rasgo de esperança, que a boa alma mos ia dispensar, limitou-se afinal a dizer: «Tenho muita pena; por acaso os livros não são para mim, se não dispensava-lhos com todo o gosto, mas são para um amigo meu que já os procura há muito tempo. Só por isso. Como compreenderá, estou mandatado para lhos adquirir onde quer que os encontre, mas não estou mandatado para os dispensar por ele a terceiros».

Silêncio!!! Silêncio durante o qual, confesso com uma pontinha de vergonha, o meu cérebro ainda pensou "Serei eu o amigo deste gajo e não me lembro dele? Só pode ser, amanhã ele vai-me contactar a dizer-me que finalmente encontrou os livros que eu procuro há tanto tempo" (recordo que, além de não haver Internet, também não havia ainda telemóveis, quando isto tudo se passou).

Conclusão, fiquei triste e sem os livros e assim regressei ao Porto. Aliviei a tristeza durante a viajem de regresso contando a peripécia aos meus colegas, que se riam até fartar e eu acabei a rir-me com eles.

Mas nem tudo são tristezas nesta história. Um belo dia, passados poucos meses do episódio que acabei de relatar, algo de extraordinário aconteceu. Fui às compras ao Continente de Gaia, e ao entrar no hipermercado esbarrei numa bancada de livros, colocada ali propositada e estrategicamente para reter os clientes logo à chegada, e instintivamente peguei num livro ao acaso. Tinha uma imagem na capa que estimulava boas memórias no meu subconsciente. Só ao cabo de longos segundos, minutos talvez, reparei no título: "D. Quixote de La Mancha - Versão de Aquilino Ribeiro". A reacção foi inesperada, comecei a tremer de emoção. Confirmei, e lá estava: a Bertrand reeditara a obra. Havia ali dezenas de exemplares, mas aquele já o não larguei mais, e está aqui mesmo ao meu lado no preciso momento que escrevo estas palavras.

É uma leitura recomendada (para as férias). Para aqueles para quem falar de Cervantes ou de D. Quixote é o mesmo que falar da história que conta as peripécias de um desaparafusado dos miolos a lutar contra moinhos de vento, vai surpreender-se (muito) positivamente.

Seguem-se os links que dão acesso aos ficheiros dos três capítulos da Novela do curioso Impertinente e um quarto link que remete para a página eBooks do blogue Biblioteca Virtual Estudante onde estão disponíveis os dois volumes da obra, na versão integral em Português, correspondentes à primeira e segunda partes do livro:

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